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Carreta da Invigilância Sanitária

 Há pouco tempo atrás o Brasil ficou estarrecido com uma reportagem exigida no programa Fantástico, da Rede Globo de televisão, na qual diversas pessoas idosas ficaram cegas no interior de São Paulo após terem sido submetidas a cirurgias de cataratas dentro de um caminhão transformado em unidade móvel de cirurgia oftalmológica. Naquela ocasião, houve uma grande infecção decorrente, pelo que foi detectado, de má condição sanitária e de uso de produto inadequado na limpeza dos equipamentos e utensílios cirúrgicos.
Ainda assim, em muitos estados brasileiros a populista “carreta da visão” foi contratada, seja utilizando-se de recursos financeiros próprios dos Estados-membros, ou por meio de convênios firmados com a União. No entanto, em quase todos os recantos houve problemas com relação à execução dos contratos e, principalmente, na fase interna e anterior à contratação.
No Distrito Federal a contratação e os procedimentos dos mutirões foram alvo de questionamento por parte do Conselho Regional de Medicina, que apontou que durante as operações não havia limpeza de equipamentos entre os exames de vista e que o espaço físico limitado não atende às necessidades, além de apontar alto risco de infecções, pois o lixo hospitalar não tinha a proteção adequada. Matérias jornalísticas que se encontram com facilidade na internet relatam que pessoas morreram infectadas após as ditas cirurgias em carretas. Não por outro motivo, acatando pedido do Ministério Público, foram suspensas tais cirurgias pela Justiça.
Em Rondônia também foi suspensa a prática, inobstante a contratação naquela ocasião ser advinda de uma licitação na modalidade concorrência pública e prever a locação de espaço físico nas cidades, e não somente da carreta.
Mas o que causa estranheza é o fato de existirem agentes políticos que, mesmo sabendo os erros técnicos e da precariedade do que se propõe, continuam defendendo a suposta necessidade de a tal carreta ser utilizada para cirurgias em mutirão, como o governador do Estado de Mato Grosso do Sul.
É espantoso o fato de que sempre a contratada pelos estados ser a mesma instituição, conquanto já tenha alterado inúmeras vezes o seu CNPJ, mas seus representantes e equipe são os mesmos. E o interesse de tal instituição, pelo que parece, é buscar a contratação em regiões circunvizinhas, tanto é que já estiveram no Distrito Federal, no Tocantins, em Rondônia, Mato Grosso do Sul e agora devem ser contratados pelo Estado de Mato Grosso. Sim, serão contratados diretamente, sem licitação aqui em Mato Grosso.
Há cerca de uma semana o Poder Executivo de Mato Grosso, por meio da Secretaria de Estado de Saúde, publicou o edital de credenciamento nº 001/2016, cujo estranho escopo é credenciar pessoas jurídicas para prestação de serviços oftalmológicos clínicos e cirúrgicos, em unidades móveis assistenciais com abrangência para todo o Estado de Mato Grosso. Mas antes mesmo de tal edital se tornar de conhecimento público, já temendo que a referida carreta viesse se aventurar em Mato Grosso, um grupo de médicos oftalmologistas buscou abrir diálogo com os representantes da Administração Pública, inclusive por meio de parlamentares médicos, a fim de que houvesse uma melhor compreensão sobre o tema. Todavia, a resposta foi a de que já era certa a contratação daquela instituição que vem (des)servindo em outros estados.
Os médicos daqui de Mato Grosso, que buscam crescer e, com isso, ajudar no crescimento do estado, que geram empregos, pagam todos os seus tributos estaduais e municipais, e que são minuciosamente fiscalizados pelos órgãos de controle e de vigilância sanitária, jamais poderiam esperar uma atitude nitidamente sem planejamento e dissociada da realidade.
Há dados públicos, governamentais, inclusive, que demonstram inexistir a fabricada demanda para cirurgia de catarata descrita no edital. Há sim, necessidade relevante de cirurgia oftalmológica, mas não de caratara, cuja a necessidade é menor. O que os dados apontam é para a demanda reprimida para o procedimento de vitrectomia (correção de retina), ao passo que a famigerada carreta somente é voltada para cirurgias de catarata.
Ademais, sendo necessário um mutirão de cirurgias de catarata, por que o Estado de Mato Grosso não o realiza em parceria com os médicos mato-grossenses? Por que fazer com os de fora? Por que fazer em um caminhão transformado em precário centro cirúrgico para se atender duas pessoas ao mesmo tempo, se existem os hospitais regionais e, sobretudo, considerando que os médicos oftalmológicos de Mato Grosso se comprometem a realizar todas as cirurgias necessárias, aceitando receber o pagamento de seus honorários com base nos valores da Tabela SUS, que é de 1998?
Há outros questionamentos pertinentes: por que o edital é de credenciamento e já solicita proposta para contratação direta? Por que se escolheu a modalidade credenciamento com prazo exíguo de apenas 10 (dez) dias para a inspeção e seleção da carreta? Por que o único critério de julgamento é o “sorteio”, sem nenhuma diferenciação técnica, ao passo que sorteio, nas ordinárias modalidades de licitação é o último critério para desempate? Quais empresas de Mato Grosso foram consultadas para fornecer orçamentos para fins de balizamento de preços de exames, fornecimento de materiais, etc.? Como pode a vigilância sanitária ser tão exigente com as clínicas e salas de cirurgias dos hospitais e vir a ser favorável a tal “política pública”?
Se as despesas com a contratação correrão à conta dos recursos constantes do orçamento do órgão requisitante (Unidade Orçamentária: 21601 – Fundo Estadual de Saúde) também é lícito perguntar se tal programa de cirurgias em carreta foi deliberado e aprovado pelo Conselho Estadual de Saúde.
Além disso, diz o tal instrumento convocatório para credenciamento (que na verdade está mascarando um contratação por inexigibilidade de licitação, conforme o item 1.1) que o profissional médico que realizar a cirurgia na carreta atenderá o paciente em até sete dias após o procedimento. Entretanto, é muito natural e possível que a cirurgia venha a causar alguma intercorrência no mês seguinte, ou dez dias depois, sobretudo em se tratando de idosos.
Enfim, por todos esses lamentáveis motivos, nesta semana a OAB/MT, o CRM, o Ministério Público, o Conselho Estadual de Saúde, Deputados conscientes, o Tribunal de Contas, dentre outras instituições serão noticiadas oficialmente destas questões para que as providências cabíveis sejam tomadas com urgência, sempre na busca de salvaguardar o direito e a saúde da população financeiramente carente e que necessita do SUS, com a esperança, ainda, de que o Estado de Mato Grosso reveja sua precipitada e irregular intenção e dialogue com os médicos e com a sociedade interessada.

 Nestor Fernandes Fidelis.


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